O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O Sacrifício

Não mais de duzentos metros separava a masmorra do altar destinado aos sacrifícios. Caminho curto, onde o réu anda a passos lentos, encoleirado por uma corda ordinária, porém atada com um nó profissional. Esse, com quase sessenta quilos é guiado por o seu próprio carrasco. A platéia é numerosa e mantém o silêncio. O cheiro é o inconfundível de morte prenunciada.

O Natal está próximo e o carneiro está cada vez mais gordo. Separado, o animal agora recebe uma dieta especial à base de farinha, milho, verduras e capim com melado... muito melado. – o melado serve pra deixar a carne mais mole e tira o cheiro de macho – diz a sinhá.

Três homens esperam o animal para o sacrifício. Um dos homens entrega o machado ao carrasco de uma forma épica, lírica e decidida. O carneiro sabe o que está prestes a acontecer e com um simples gesto de súplica, olha para os homens ao seu redor. –
Béééé!! – implora por piedade o mártir. Uma menina de vestido rodado coloca as mãozinhas no ouvido. Ela torce pelo ruminante. Um menino hipnotizado aguarda com ansiedade o espetáculo, que com esse, forma o quarto assassinato onde foi testemunha ocular. Viu um de um boi, de dois porcos e de várias galinhas (estas, não costuma acrescentar à sua coleção).


O carrasco, experiente e especialista na arte de matar bodes, cavalos de patas quebradas, cachorros com calazar, bois, galinhas, porcos e burregos mal-paridos, fora chamado de outra fazenda só para maestrar o sacrifício. O moreno, que é bruto, descalço e sem camisa, levanta o machado com firmeza fazendo mira. Com a parte posterior da ferramenta atinge a testa do animal com força. O pobre bicho treme as patas dianteiras e abaixa a cabeça tonta. Não transmite som algum e espera, talvez, por um próximo golpe. Levanta os olhos amarelos e já sem visão, tentando entender o que está acontecendo. Depois de poucos segundos, tomba pra frente equilibrando-se apenas por suas patas traseiras que se mantêm duras como paus.


É um carneiro grande e por isso é preciso dois homens para derruba-lo ao chão. O animal sente muita dor e desespero. Tenta pronunciar algum gemido, mas a garganta está presa e ao abrir a pequena boca, somente sai uma linha de sangue e saliva que toca até o chão.

O fino punhal sai da calça do carrasco e percorre graciosamente pelo pescoço do bicho a procura do ponto certo para a perfuração. Esta é a parte mais difícil do trabalho, mas logo encontra o local exato. Com a astúcia de um espadachim, o homem penetra o punhal até a metade de sua lâmina e rapidamente retira a arma do buraco aberto no pescoço vivo do animal, limpando o pouco sangue no seu próprio couro. Jorra um primeiro jato vermelho vivo, de sangue vivo, do animal ainda vivo e suja toda o braço do matador. Não existe mais dor, mas o desespero é enorme e o pobre ovino abre a boca muda inúmeras vezes na tentativa de berrar em nome da desgraça. Em poucos segundos o animal estará morto.

Um segundo jato vermelho chapado, quase preto, de sangue morto, jorra da ferida. A sinhá, com seus peitos enormes, corre junto ao animal e coloca uma bacia de tamanho mediano perto do morto, que é levantado por uma corda amarrada pelas suas patas traseiras.

Já erguido, o próprio matador, com um leve pontapé, coloca a bacia bem embaixo da cabeça do animal que logo ficará cheia de sangue (matéria prima para o sarapatel).

É o fim do espetáculo e os espectadores, aos poucos voltam aos seus afazeres. O carneiro será tratado, limpado e até os ossos e o couro serão aproveitados. Resta somente uma pequena pasta de sangue negro no chão que serve de iguaria aos cachorros ordinários da fazenda.



Garoto e Colega.

Com os pés apoiados em uma pedra quadrada no chão e com a barriga junto a pia, ela lava a primeira leva de roupas. A barriga já está completamente molhada, resultado da água que respinga do tanque. Os meninos estão brincando. As férias são sempre assim. Os pais vão trabalhar e deixam os pestinhas ao cuidado da senhora.

O verão se expressa dando indícios de sua força; De manhã a chuva é forte e fria. Depois do almoço, começa a aparecer às borboletas brancas e amarelas que resulta no alvoroço e divertimento dos dois vira-latas da casa. As mangas ainda estão verdosas (infelizmente). O lamaçal causado pela chuva da manhã ilhou a pia onde ela vai lavar as roupas. É preciso se equilibrar na pedra pra não melar o pé de barro e sujar a casa toda.

Os cachorros não param. Pulam tentando pegar as borboletas. Os rabos compridos de vira-latas inquietos, a língua rósea pra fora de pura felicidade busca abocanhar os pequenos insetos voadores. É uma algazarra. Latidos em vários tons percorrem todo o quintal em busca da esquadrilha branca e amarela. São dois. Garoto e Colega. Um, cor de mel e o outro, cor de carvão. São os reis e sócios daquele paraíso.

Os três meninos não param. Há cada cinco minutos, uma brincadeira diferente: Caçar minhocas, matar calangos, luta-livre, piratas, robôs, personagens de seriados japoneses, brincam de bola, travinha, pênaltis, escanteio e quadrado. Jogam bila, bafo com as figurinhas do Campeonato Brasileiro do ano e de vez em quando o mais velho consegue (ilicitamente) bombas rasga-latas. Ouvem música e tocam instrumentos musicais imaginários. Precisam comer muito, pois, segundo a vó, gastam muita energia. De tarde são duas jarras do liquidificador de bananada com muito açúcar. Depois do almoço, enquanto dormem os avós, uma espiadinha das revistas “secretas” de mulher pelada do avô.

Semana passada, houve um grande alvoroço quando Colega, o vira-lata preto, mordeu a mão do menino mais novo. A mãe ficou alarmada e quis levar o pestinha ao hospital para tomar uma vacina. – tem problema não, minha filha. – apazigua a avó – lavei com sabão de coco a ferida e o além do mais, o Colega é vacinado. (...) é minha filha, o Colega é meio temperamental. Cismou com o menino, que é uma coisa...

A tarde cai e as mães vêm pegar seus respectivos filhos, já esgotados de tantas aventuras. A avó já preparou o cuscuz do seu companheiro. As borboletas dos cachorros já se foram e agora eles já estão deitados na cozinha, quase dormindo perto do fogão. O avô come sua janta com pressa para assistir tevê. A avó lava o restante da louça da tarde e sorri um sorriso cúmplice se lembrando de mais um dia de alegria naquela casa tão triste.

Uma pulga esfomeada faz uma cosquinha gostosa atrás da orelha de Garoto que se coça sem pressa. Uma verdadeira terapia. O outro dorme sabendo que amanhã tem mais borboletas.

domingo, 7 de outubro de 2007

O Velho Cavalo


Eram quatro homens. Agora só restavam três. Sentados na areia cinza em volta de uma fogueira, esperavam que o Líder começasse a fábula da noite. O mais gordo (o Líder), com seus olhos de carneiro e seus lábios molhados de saliva, sentia-se contente pela atenção do seu público formado por apenas dois homens. Como já disse, eram apenas três mendigos com corações machucados e os estômagos vazios.

- Em uma vida passada eu era um cachorro. Não um cachorro grande, mas um cachorrinho – o Líder deu um gole na cachaça – não era um cachorro de madame com lasso perto da orelha. Era apenas um cachorro pequeno e burro, porém feliz.

Quando o mais velho do grupo morreu de morte natural, (causada pela aguardente excessiva. Para eles, morte mais natural impossível) fizeram o possível para dar o máximo de dignidade, ligando para o hospital, explicando que havia o corpo de um homem no calçadão da praia. O quarteto estava quase desfeito. O corpo estendido no chão à espera da ambulância, que estava atrasada há um pouco mais de seis horas.

Não adianta falar da vida de cada um dos homens. Personagens desinteressantes até mesmo para eles. Vidas desgraçadas, invisíveis e marginais. Puro mal odor, piolhos, amizade e cachaça barata. Todos os três à espera do carro para levar o corpo do inesquecível falecido companheiro. Restava apenas o Líder contador de história; o louco careca, sem dentes e que reclama do frio; e o mais novo, mais magro, mais negro e que se alegra ao ouvir as fantasias do líder. Seis horas que o corpo se encontra ao chão.

Espera demorada. Seis horas de silêncio e de auto-reflexão. Ora, banhados de revolta, ora, banhados de aceitação. A barreira do irreal é quebrada em vários momentos e existe uma certeza que o morto está vivo e é apenas mais uma brincadeira do Velho Cavalo (assim apelidado o mais velho mendigo). O louco, de vez em vez, dá pequenos chutes no ombro do morto com uma esperança de uma reação impossível.

Sentados na areia, em volta da fogueira, eles escutam a história sobre a vida passada do Líder. Ontem, o mote era sobre os cowboys do faroeste, que viveram nos Estados Unidos. Hoje o tema é a reencarnação. Ontem não tinham cigarros, hoje não têm a presença do Velho Cavalo.

- Era um cachorrinho. Feio, preto e burro. Sonhei com isso outro dia. Passava todo o dia correndo atrás dos carros e vendo os meninos passarem cerol na linha da pipa. Era feliz. Não me faltava comida e amigos. Acho que o Velho Cavalo vai nascer como um animal bem burro. A burrice nada mais é que a felicidade com outro nome.




quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Amor de Menino

Depois do almoço era a melhor hora para o menino. Saía correndo rumo a parede do açude. – já vai brincar no açude? Menino... vai se aquietar... – dizia a mãe, as tias e todas as mulheres da casa. Os homens até que achavam normal aquela correria desesperada para diversão de menino 12 anos. - Deixa o menino descobrir a vida, mulher!

A ciência comprova que o amor está cem por cento, ligado ao prazer. O prazer se torna melhor quando se faz amando.

O menino (depois do almoço) chega à parede do açude já ofegante. Primeiro espia. Espia atrás do grande eucalipto que jazia por perto. Embaixo de seus pés somente o mato verde e fresco. O eucalipto fazia uma sombra deliciosa e ele sabia que lá, era o lugar favorito dela!

No começo se sentia culpado por fazer isso. Na escola, falaram que é pecado. Quem faz isso, vai pros quintos dos infernos (tudo no plural). Agora, já se sentia tranqüilo e sabia que naquele pecado capital, os dois (ela e o menino) eram cúmplices.

Chegou atrás da grande árvore, já bastante ofegante. Descansa e espia. Não tinha como dar errado. Lá estava ela, paradinha, calminha, aproveitando a frescura da sombra. – É simples... descansa que ela não vai sair daí. Vai devagar. Ela vai deixar... ela sempre deixa, ora mais... – um sorriso maquiavélico surge na face do menino. - Eu sei que ela gosta... gosta até mais que eu... quase nunca faz barulho... ela gosta.

Ela estava morando na fazenda, fazia pouco tempo. E pra falar a verdade, ele nunca tinha reparado nela. Ela era diferente, mas o primeiro amor é de certa forma, sempre diferente.

Ele chega rápido e por trás. Passa a mão na sua loirice avermelhada. – Calma meu amor... sou eu, sou eu. – falava o menino de forma tranqüila. – Não te preocupa. Não vou fazer nada de mais. – Cara-de-pau! Ele faz carinho, pega nela, nos seus pequenos seios. – Meu amor! Eu gosto muito de você... Sabia? – ela continua estática. Olha pra trás com um olhar cínico e provocador. Dá um pequeno gritinho e se sujeita ao sacrifício em favor do seu amante. Ele ajeita seus pezinhos com muita delicadeza. Acaricia a sua forma curvada e faz o que tivera pensando durante toda a manhã: Encontrar embaixo do eucalipto com a sua amada. – Que delícia... – pensa o sacana.

Independente de conceitos. O amor é puro e louco. Sempre na medida certa. Puro e louco. Louco por que às vezes não segue uma linha. Puro como o de um menino e de uma cabritinha.

Seu Zezo

Brincando, brincando, me vem a memória, a incrível figura de seu Zezo. Histórico na minha infância e um dos personagens favoritos da minha juvenil imaginação


Motorista de nossos vizinhos, seu Zezo com certeza não tinha uma vida tão espetacular, porém significativamente abençoado pelo dom da prosa e da fantasia, minha cabeça criou um personagem peculiar. Um verdadeiro aventureiro.

Seu Zezo ou Raimundo, nasceu há mais de 60 anos na cidade de Cedro, interior do Ceará. Trabalha como motorista há mais de 20 anos. E sempre para o Doutor Antônio Carlos, obstetra e com mais ou menos a mesma idade de seu Zezo. – Conheci o Doutor Antônio na noite. Eu era motorista de táxi. Você sabe que também já fui motorista de táxi, né? Aquele tempo era uma maravilha...- (para seu Zezo, tudo no passado era uma grande maravilha. Achava que ele tinha razão).

- Já morei no Sul. Lá em São Paulo. Lá, além de ter trabalhado no circo, trabalhei como carcereiro. Os bandidos tinham o costume de me chamar de Baiano Branco.

- Eu lavo a camionete do seu Antônio todo santo dia. Tá vendo essa cera? Ela é própria pra camionetes. Foi comprada lá nos Estados Unidos. Foi seu Antônio que mandou trazer... Gente boa, seu Antônio... O tanto de dinheiro que ele tem, nunca buliu na cuca dele.

- Eu, na sua idade, tinha um garrote. Grande! Gordo! Tinha uma corcova tão gorda que pendia pro lado. Cê sabia que a corcova do boi é igual a dos camelos? Serve pra guardar água pra época do seco. É todinha cheinha d’água.

- A gente ouve estórias de presos fazendo confusão na cadeia, hoje em dia. Naquele tempo não. Naquele tempo os presos respeitavam os carcereiros, polícia e até padre! Cê sabia que uma vez, lá em São Paulo, tive o prazer de conhecer um padre que foi preso? Pois é... Homem de muita cultura.

- Em São Paulo, eu já trabalhei em circo. Sabia? Hahaha.

- Eu também já criei um tatu. Criava dentro de uma lata grande, quase da minha altura, toda cheia de areia. Era desse tamanho oh... oh...

- Eles me chamavam de Baiano. Eu não sei! Imagino que pra eles, todo mundo que vem do norte é baiano. Já conheci muito baiano, mas nenhum se parece com o meu povo do Cedro. Não que baiano não goste de trabalhar, mas porque o meu povo do Cedro é muito trabalhador.

- A vida no Cedro era uma maravilha. Não podia reclamar. Só peguei desgosto quando meu pai desfez meu garote.

- Todos os dias quando voltava da cadeia, ia pra casa de Naná. Era comida na mesa e lençol lavado. Até a minha pinga a crioula deixa separada. Era uma maravilha.

- Toda tarde eu colocava um pires de leite e o danado do tatu saia do buraco e ia beber o leite. O povo diz que tatu come defunto, mas é mentira. Tatu é um mamífero! Bebe leite como eu e você. Não come defunto não, Lucim.

- Oh... crioula danada, essa Naná...

- Meu garote tava grande, menino. Gordo que só vendo. Forte! Eu montava nele e era tudo uma maravilha. A corcova ia prum lado e pro outro. Uma vez o Pai chamou e disse: Raimundo! Raimundo! Seu garote tá muito gordo e dando muito prejuízo. Ou a gente vende pro seu Inácio, ou a gente mata e come. Fiquei danado, mais por medo do que por outra coisa. Já pensou? Perder meu garote que eu tanto cuidava? Fiquei tão danado que quebrei duas cabaças de água. Levei uma surra e não se falou mais nada sobre o garrote, até que duas semanas depois, o bichinho virou nosso jantar por mais de um mês.

- Conheci Naná no baile, lucim... namorava com outra.

- Ah... esse padre... não me lembro o nome. Cê sabia que padre é povo de muita cultura? Um homem pra entender nas coisas do Céu, tem que entender de quase tudo que se passa na terra. A única coisa que padre não entende, é de mulher. Hahaha!

- (...) já viu que menina mais linda, essa? Mesmo com a minha idade, num tenho medo de mulher, não!

-O homem só é cem por cento corajoso quando perde o medo da miséria e da solidão. Já perdi faz tempo...

- Eu tinha um cachorrinho, também. Mas isso já foi lá no sul...

- Já te contei como eu virei taxista aqui em fortaleza?

- Me apaixonei por Naná à primeira vista! Isso existe, menino!

- Você quer saber o que aconteceu com o meu tatu? Ah... essa é uma boa estória...

- Naná era de Recife. Você conhece Recife? Eu conheci quando fomos conhecer os pais de Naná. Tive que pedir em casamento ao pai. Homem bruto! Pela crioula eu fazia tudo!

- Quando você ficar mais velho você vai entender.

- Ah... lógico... Conheci muito bandido e ladrão em São Paulo. Lá, já trabalhei de carcereiro. Fiquei até muito amigo de um! Henrique... eu acho que o nome dele era Henrique. Quando saiu da cadeia, foi morto... não sei porque.

- O problema de ficar velho é que você começa a ver todos seus amigos morrendo e você fica pensando: tá chegando a minha vez, tá chegando a minha vez, tá chegando a minha vez... No findar, a aflição dá lugar a uma espera normal. Até hoje, antes de dormir eu penso: tá chegando a minha vez...

- A vida é boa, menino. A vida é boa e é fácil. Tá tudo aí, nas mãos de cada um.

- Uma vez, vi um homem pular de um prédio. O incrível foi que ele não se esborrachou no chão. Ele caiu flutuando igual a uma pena. Falaram que foi a mão de Deus que segurou o homem. Hahaha .

- Oh crioula danada, essa Naná... É o tipo de mulher que cuida do homem que tem...

- Naquele tempo, tudo era uma maravilha, Lucim...

- O problema é que a gente só aprende a viver quando tá velho demais. Hahahahaha.


segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Huxley


"Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mão dadas; mas são crucificaods sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotransparência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias - tudo isso são coisas privadas e, a não ser através de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares." (...)

[Huxley]

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Comparação


O amor tem que ser igual a um bom conto:

com um começo irrelevante
e com um ápice do meio pro fim.



quinta-feira, 15 de março de 2007

A Gigante Zuca


L. era pequeno. Pequeno porque era criança... Não tão pequeno quanto às outras crianças, mas para ele, tudo que era maior que sua altura, se tornava um gigante. Gigante como as árvores, os postes, os maiores da escola ou a camionete do seu pai. Gostava muito das coisas gigantes, principalmente do biombo gigante de sua bisavó gigante. L. não tinha medo dos gigantes.

Era divertido ir pra casa da bisavó Zuca. Principalmente brincar atrás do biombo marrom, amarelo, cheiroso e completo da vovó. Era proibido, mas L. brincava mesmo assim.

Antes do almoço, frango assado, Zuca chamava L. discretamente. Abre o forno e mostra o frango (gigante). – Quer as coxinhas? – pergunta Zuca. – Quero, vó!- responde o pequeno.

Com suas mãos brancas, pegava dois guardanapos (mais brancos que suas mãos) e um em cada mão, arrancava as coxinhas de uma forma mecanicamente e cirurgicamente perfeita. Que privilégio! Comer as coxinhas antes de todos! E antes do almoço! Zuca era a gigante que L. achava mais legal.

Saía pela sala com uma coxinha e cada mão, ora dando uma mordida na direita, ora na esquerda. Devorava rapidamente seu presente, causando a inveja dos primos e a vaidade de Zuca. – Esse menino é um guloso. Na hora do almoço não vai comer nada... to falando... to falando... - nõo limpa a mão na calça menino!... to falando... to falando...

De fato, na mesa, não tinha mais tanto apetite porque já tinha devorado as duas deliciosas coxinhas do frango, agora incompleto, aleijado e sem graça. Não faz mal.

Hoje em dia, L. virou um gigante e quando tem vontade de escrever, pensa sempre na vó Zuca. Tem saudades da gigante vovó, porém, coxinhas de frango no guardanapo, nunca mais.

domingo, 11 de março de 2007

O Padre na Casinha

O padre olha pro chão de cimento sujo de barro vermelho (cor de jerimum). Olha pro teto com telhas gastas (cor de jerimum). Ele sua. Sua como um porco. “Like a pig”. Na Casinha, no banheiro, na privada, se sente tão mortal como os imortais nativos daquela pequena cidade do nordeste brasileiro.


Padre Pumpkin, britânico de sangue, romano de coração. Veio parar nessa terra-de-seu-ninguém mandado pela arquidiocese da capital há mais de um ano, como sansão de suas más condutas praticadas na cidade grande. Como chegou no Brasil, não se sabe.

- Aqui é o inferno! Pessoas se matam a facadas por conta da aguardente! A aguardente é a bebida do Satanás! O vinho não. O vinho é o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. – pensa o Padre na casinha enquanto seu suor empapa sua velha batina – Essa cidade é quente como o inferno. As pessoas são negras pelo calor e o azedume do local, deve ser parecido com o enxofre “from hell”.

Repara longamente no quadrado de ângulos mal traçados que o circula. No centro, a privada branca amarelada. As paredes, com sua base já negra pelos fungos e musgo. A falta de ventilação do cubículo faz reinar um cheiro intragável. Repara no teto. Um coro de cobra já seco, uma telha quebrada que faz deixar penetrar uma fresta de sol – Essa luz foi mandada por Deus para me auxiliar nesse trabalho de Satã! Filha única é essa luz! – pensa o rabugento padre. Uma ratoeira colocada, não tão simetricamente ao lado da privada – Os ratos se alimentam até de merda! Terra esquecida por Deus! – blasfemeia o padre Jerimum. Uma aranha pequena e azulada desce no teto em sua teia fina e perfeita e estaciona a alguns palmos do rosto do padre para caçoar de sua má condição de mal cagado.

Recém chegado à pequena cidade, tenta explicar ao povo o significado de seu nome, apelidado logo em seguida pelo singelo apelido: (padre Jerimum). – Aborígines! Primatas! Índios ateus! Não respeitam nem um missionário de Deus! Vão todos pro inferno! Malditos abutres comedores de lagartos!

Padre Pumpkin caga. Caga como um Rei. Caga como um touro. Caga e pensa no estupro de sua alma exposta a mais ardente e real miséria humana. – ótima maneira de terminar a velhice... viver para cagar e tentar passar a palavra de Deus na terra dos demônios – ironiza o sacerdote.


Humilhado pela diarréia causada pela carne de porco ou pela galinha cozida, o padre chora. Chora e caga reparando no jerimum da telha e do chão. A aranha humilha o padre cagalhão.

sexta-feira, 9 de março de 2007

Maria Facão

De menina, tem a beleza; de virgem tem o nome da mãe de Cristo; de homem, além da coragem e da força, não tem mais nada; de mulher, tem o carinho e o trato com seus homens; de minérios, tem o aço do vulgo e o carvão da cor. O coração é vermelho.

Maria Facão... Dizem que é tataraneta de um guatemalo, traficante de escravos; Ela diz que tem mais sangue negro do que sangue branco. Seu pai era pescador no porto em Cartagena das Índias, descendentes de puros índios. Maria Facão é amante. Ama pelo simples fato de amar. Ela diz que possui um coração muito grande (de fato, possui amplo e materno busto). Ela diz que além de amar, é preciso dar amor (de fato, possui ancas largas).

Sua mãe, espanhola lhe deu de herança o sangue branco e fulgor com os íntimos. Filha de pai índio e mãe branca nasceu negra, não se sabe como. Não se sabem, de fato, se o pescador que a criou era seu verdadeiro pai. Maria é recheada de lendas. Diz-se filha de Oxum e devota de Santa Ana. Mistura que abala a sociedade de Cartagena... (o horror das mulheres e a ambição dos homens). – Bruxa! Satanás! Vais pro inferno! Oh! Rainha da maldade! – indigna-se a sociedade! – Linda! Dou-te casa, Maria! Faço-te um filho, Maria! Quero ser teu filho, Maria! – indigna-se a sociedade.

Ela não liga... De olhos fechados ou admirando as estrelas ao meio-dia, Maria Facão desliza sobre o chão de calçamento, seu servo.

"Gosto de aguardente;
Gosto do gosto de homem
e comer banana quente."

Maria briga quando tem que brigar.

Maria nada nua. Maria se afoga na noite e dá risadas. Ela geme... geme baixinho, geme com gosto, geme de amor, geme cantando, mas não geme de prazer. Não! Para ela, prazer é coisa séria e tem que ser respeitado. Na cama, Maria não geme.
Geme de raiva. Quando tem que brigar, briga. Bate em soldado, em polícia, em homem, bate em mulher, em padre, bate em índio moço e granfino do Centro. Vai pras feitiçarias dos negros e pras missas dos brancos. Briga, mas só quando tem que brigar. A negra.

Dizem que é valente como homem, pois foi criada pelo o homem mais valente da Colômbia. Não foi criada pela mãe (que dizia que a espanhola também era filha de Oxum). Morreu no parto. Oxum não podia habitar dois corpos ao mesmo tempo. Era a vez de Maria.

Essa Maria... faz o que o Satanás gosta, agradecendo a Deus.
Essa Maria... Os mais cativos dizem que quando morrer vira Santa. A primeira santa de Cartagena. Vê se pode... A rainha da maldade, uma santa... O diabo que ama pelo simples fato de amar.