O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

A Noite de Bodó.


Era noite de lua-cheia e a luz branca transmitida pelo astro faz com que o mato verde adquira uma tonalidade azulada. O mato cresce alto nas laterais da estrada de terra formando um túnel vivo, onde a crista é o encontro das copas das árvores. Aqui e ali, os cipós escorridos no topo, dão um ar fantasmagórico à arquitetura natural.


Bodó faz esse caminho desde sempre. Aos sábados, vai cedo para o bar do povoado Jardim e volta para a casa na madrugada alta. O caminho é longo e deserto. Uns três quilômetros de uma caminhada que ele conhece decorado. Às vezes enfrenta a noite escura como o breu. Mas essa noite, especialmente clara, ele volta devagar, bêbado, adivinhando os sons dos animais noturnos e olhando para a grande bola branca, imponente e imortal, estacionada lá no alto.

A cachaça torna-o leve. Sente, em certos momentos, que flutua. Assovia alto e imita os lamentos dos bacuraus e das rasga-mortalhas. As cigarras e grilos formam uma orquestra desarmônica e interminável. Longe, um macaco sonâmbulo grita alto, talvez chamando à fêmea. Bodó pensa na sua, que deitada na esteira, cansada da enxada e de colher macaxeira, espera o marido, para só assim, cair no sono completo e confortável aos seus braços.

Ele se sente feliz e realizado. Os bichos são seus visinhos. Harmonia com tudo isso e zelo por tudo aquilo. Vez por outra, sente em suas pernas uma língua do vento frio que desce autoritária da serra próxima. Ele ri da confusão do clima. Acha curioso o duelo covarde da frescura serrana contra o mormaço da mata.

Neste dia em questão, bebeu para comemorar, pois fez um bom negócio vendendo o burro Conde para Zé Vassouras, comerciante local. O burro era um xodó, mas ultimamente andava preguiçoso e comilão (vícios ocultados na transação). Comprará um novo rádio para sua mulher Magnólia e dois bons galos para a criação. Comemora o progresso. O corpo envernizado pelo álcool faz com que o sorriso brote fácil da face marcada.

No percurso pensa no passado difícil. Não que o presente fosse fácil, mas antes, na época em que conheceu sua mulher, que a tirou da casa dos pais, tudo era mais lento e sofrido. Passou fome na época do seco e ela, companheira fiel, permaneceu ao seu lado, rogando paciência e um pouco de chuva aos santos. Bodó lembra-se cabeleira negra, presa por uma trança longa e grossa que ela possuía. Olhos pequenos de índia, boca fina e rasgada, onde os minúsculos dentes nunca aparecem. Sua timidez e fidelidade fazem com que o agricultor ame tão ternamente sua mulher, mesmo sem essa nunca ter lhe dado um filho.

Certa noite, Bodó sonhou que era perseguido por uma onça grande e de olhos rubros. O animal perseguia o homem e chegava mais perto a cada momento e ao alcançá-lo, em vez de atacar e devorá-lo (como previsível), ela o abraçou com suas garras felinas e obrigou-o a mamar em suas tetas. A onça, como magia, se transforma em Magnólia e ele mamou sossegado nos peitos da amada, sugando seu leite doce. Acordou eufórico achando que o sonho era a premunição de uma gravidez da companheira, mas o tempo foi passando e o filho tão desejado, nunca germinou.

Mas nesta madrugada, ele não quer lembrar as frustrações e complexos. Sente-se realizado e esperançoso. Tem dinheiro no bolso e idéias para uma significante melhoria de vida.

Possui algumas galinhas e um único galo magro e indisposto. Comprará mais dois grandes e assim duplicará o galinheiro em poucos meses. Vai vender os ovos para Zé Vassouras. Lucro certo. Assim, quem sabe, comprar um novo burro no futuro. Um animal melhor que o Conde. Irá escolher um a dedo. Um burro preto, bom de trabalho, animal de tração.