O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Cisplatina


Faz um calor brutal. Não chove há dias. Céu é feio e sem vento. Os urubus sobrevoam. Estamos perdidos. Ilhados pelos cadáveres dos nossos próprios bugres. É outubro de 67. Dizem que a guerra já anda pelo fim, e, pela primeira vez, o regimento 22 se vê em situação de total alarme. Homens mortos aos montes. O que fazer? A estratégia militar nos obriga à permanência. O que me incomoda é o cheiro putréfico que apetece as aves.

No início éramos setenta e quatro homens. A maioria, negros alforriados em busca de alguns contos e a promessa da entrada pelo portão da frente do Império. Engano. Vieram pra morrer. Hoje não passamos de dezessete. O fogo da pólvora, a cólera-mórbus e a fome eliminam um a um de nós. Caímos em cilada.

Os vivos, muitos enfermos, apodrecem ao leu. Acabou a botica. Rezo. Guerra e doença. O azedume dificulta minha concentração. Resta ainda a esperança da chegada do regimento amigo que nos resgatará. Enquanto escrevo esta carta, um soldado encara um urubu que voa baixo.

Fomos os melhores. Lembro-me com orgulho da batalha travada em Rio Yacyretá que nos rendeu até homenagem em carta oficial do Marquês de Erval. Para muito de nós, tal congratulação, pouca importância teve. Mesmo ignorantes, sabemos da qualidade ordinária da redação do Marquês. Receberíamos as medalhas no regresso. Que regresso? Narro-vos a luta:

Antes da chegada do contingente de invasão, foi determinado o mapeamento de todo o território guarani pelo regimento de planície (nós). Nossas vozes de comando, oficiais das elevadas patentes, permanentes em escritórios confortáveis, na calda da saia do Império, lambedores das botinas do Imperador Dom Pedro II, cujo único risco que correm vem de uma improvável perfuração de uma farpa de madeira, nos ordenaram a exploração daquela pequena cidade paraguaia que faz fronteira com a Corumbá, cujo portal de entrada era o rio que batizava o local.

No nosso destino, ordenei a inércia ao meu grupo. Por precaução, não levantaríamos mais de um metro e meio de altura, permanecendo invisíveis na vegetação ribeirinha. Sabíamos que estávamos rodeados por paraguaios inimigos, mesmo sem saber onde estavam. Agachados, respeitando o desconhecido, descansávamos com ouvidos apurados em busca de sons que entregam rivais. Independente de intermitências, o plano era esperar a chegada do próximo dia, mapearíamos a região determinada, voltaríamos para pegar nossos cavalos, e assim continuar o avanço com o exército completo no sítio já desbravado.

Era quase noite quando um dos nossos se levantou exclamado pela presença de uma jararaca que rastejava perto. Erro. Negro besta e mártir. Um mosquetão paraguaio estourou-lhe a cabeça. Foi o aviso. Morreu para nos mostrar a presença inimiga. Azar. Nos separamos até a margem do rio. Ganhando espaço, abrindo uma maior circunferência, conseguimos cercar quem nos cercava. Fim da tocaia sem sucesso. Dos nossos, um mártir morto e alguns poucos feridos. Do outro lado, toda tropa paraguaia eliminada. Na contagem dos corpos, constatamos que nossas armas derrubaram quarenta homens.

Tempos iniciais e de glórias que não voltarão. Os guerreiros que sobraram estão tomados pela desilusão e a certeza da morte previsível. Para mim, ainda resta esperança.

Antes da guerra, eu estava envolvido com a nobreza imperial. Fui o sapateiro real e desfilava com luxo pelos corredores do Catete. Mas os rancores da política me trouxeram às batalhas. Coisas do Império. E assim sirvo... Nunca estive na Academia Real Militar e tudo o que aprendi sobre batalhas, foi na própria guerra. Comandante de regimento? Patente até alta para um passado de nobre ridículo sancionado. Ao invés da prisão, o exército. Pena de morte. Talvez assim seja como prêmio de consolação em troca do calçados dos marqueses, condes e agregados.

Ainda no Rio de Janeiro, antes de chegar à Província do Mato Grosso, O Conde d’Eu, em discurso ao Exército do Império, dispôs que a guerra estava no fim. O tempo passou e não se acabam os paraguaios, caiouás e embiás. Acabará quando não sobrar nenhum em pé. O Império do Brasil exige a cabeça do ditador paraguaio. Falam algo sobre o domínio do Porto de Montevidéu. Não sei e nem me interessa. Nós e os aliados morremos aos tantos, mas é incomparável com a situação guarani: A população paraguaia está perto do fim. Enquanto morrem dez aliados, morrem oito paraguaios. Acontece que temos dez mil e eles só possuem cem. As cartas narram que o exército inimigo começou o recrutamento de infantes. Colocam mosquetões sobre a responsabilidade de guris. As mulheres perdem os maridos e os filhos. Acho que em pouco, elas trocarão a agulha do coser pelas baionetas afiadas.

Seremos vitoriosos e por isso não desisto. Ainda há esperanças, insisto e rezo. Além de comandante fajuto, sou sacerdote ordinário. O nosso padre morreu no início da crise gerada pelo isolamento. Erro de calculo desse que dispõe. Errei o trajeto, estamos perdidos no centro do território inimigo e morrendo aos pouco.

Há dois meses o comando ordenou novo mapeamento. Três regimentos (o nosso incluso) adentraram a mata e se separaram no ponto determinado, depois de seguir uma linha reta, traçada às cegas pelos três grupos. O primeiro regimento (nós) seguiu para a direita, o outro para esquerda e o terceiro permaneceu no ponto. Os grupos móveis mapeariam a área, abrindo uma circunferência até o ponto de partida da jornada, voltando em linha reta até o ponto guardado pelo grupo imóvel.

Seguimos para a direita até entrar em área de mata fechada e escura. Tivemos que acampar em área de risco. Não tardou até sermos surpreendidos por soldados inimigos. Tivemos baixas importantes e numerosas, mas conseguimos ganhar a batalha e seguir o rumo. No outro dia, outra tocaia. Mais mortos.

O pior aconteceu quando perdemos o trajeto. Porém há duas semanas, com muito penar, consegui estacionar os vivos do regimento numa área rochosa. Não adianta percorrer sem rumo certo. Eles sabem da nossa presença e brincam com nós. Querem nos matar no cansaço e estão conseguindo. Malditos cisplatinos. Morremos aos montes sem comida, doentes e feridos. Estamos rodeados pelos inimigos. Duas semanas. A peste voltou. Morrem do nosso lado e não podemos enterrar os corpos que apodrecem. Estacionados atrás das pedras, esperamos a morte. Dezessete vivos.

Até o Josué, depois de tomar um tiro que lhe estourou a mão, causando grande hemorragia, morreu há alguns dias e apodrece azul ao meu lado. Era um mulato esperto e endiabrado. Subordinado que me traduzia aos outros negros (mais africanos que brasileiros). Bom de tiro e de mestre na baioneta. Nunca entendi suas seitas, doutrinas espirituais e métodos de curandeirismo, mas, depois de salvar o regimento quando a peste apareceu pela primeira vez, ganhou o meu respeito e amizade.

Sobre a peste, foi disposto em outra oportunidade pelo próprio Imperador que os soldados não só enfrentariam a fúria dos homens de López, como sofreriam com aquela maldita doença que se alastrava. Em nota oficial, o médico José Pereira Rego, presidente da Junta Central de Higiene, enfatizou que nesta guerra traçada, morreriam mais homens da doença, do que das baionetas e pólvoras. Exagero?

Há tempos, também já perdemos homens com a tal Peste de Ganges (assim batizada homenageando o famoso rio oriental). Estávamos acampados perto do Rio Grande. Repentinamente, metade do meu regimento reclamava diarréias volumosas e sem fins. Seguiam os vômitos copiosos, cólicas abdominais, espasmos musculares. Os rostos dos doentes assumiam coloração amarela, pele murcha e pés e mãos ficavam frios como gelos. Completamente desidratados, apodreciam ainda vivos e, depois de podres, morriam enfim.

Como comandante, desesperei-me no episódio. Busquei distância do regimento, estudando o manual de medicina do falecido médico da tropa (foi o primeiro a morrer da maldita). Sou sapateiro e não entendi os termos. Voltando ao acampamento, observei certa inquietação no grupo. Josué cantava e gritava alto. Em transe, esfregava bosta de cavalo e plantas nativas nas chagas dos pestilentos. A oração africana era cantada e acompanhada pelas palmas ritmadas dos soldados sadios, negros ou não. O ambiente abafado com o cheiro de fezes, suor, corpos, doença e morte, me causaram mal estar. Vomitei e, erroneamente, interpretei que a cólera instalou-se no meu organismo também. Tudo perdido.

Para maior surpresa, a cantoria zulu do mulato resultou sucesso. Poucos morreram, mas os sintomas da doença desapareceram com o raiar do sol na maioria dos enfermos. O homem tinha a cura. Os deuses africanos complacentes entenderam as penitências. O Regimento 22 estava na ativa. Morte à Província Cisplatina! Morte a Solano López!

Hoje o caso é outro. Enquanto Josué apodrece, vejo a peste rondando os dezessete sobreviventes. Os homens perderam a fé em seus deuses.

Não temos o que comer e contamos com a água da chuva que cai ao anoitecer. Nosso acampamento, como disse, é rodeado por rochas, nas quais nos posicionamos atrás, fazendo-as de escudo contra os mosquetões. Sabemos que a dez metros, existe uma grande trincheira de cisplatinos e se nos atrevermos a levar as nossas cabeças, eles as explodirião. Somos alvos fáceis. Talvez nos queiram como isca para o outro regimento invasor. Eu rezo e escrevo acocorado atrás da minha rocha protetora. Ordinário Josué... Médico, sacerdote e soldado.

E quem sou eu? Um nobre condenado ou um condenado nobre? Nobreza não mede coragem. Eu sou o comandante do regimento? Digo-vos que não. Todos os esses negros que aqui apodrecem, foram mais comandantes que eu. O regimento 22 não seguiu meu comando. Sou um sapateiro. Um artista de obra manufaturada. Calço-vos. Esse é meu ser. Nobre ou não, nisso sou o melhor. A guerra é como um lazer de veraneio.