O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Monólogo da Paz

"Dei um chute na porta e ela arrombou. Pá! Foi pedaço de porta pra tudo o que é lado. Pedaço de madeira, sabe? Quebrou bem no trinco. O chute, eu mirei lá e só bastou um. O canalha tava deitado na rede da sala. Sem camisa e fumando um cigarro fedorento. A preta tava no banheiro. A casa dela é pequena, seu moço. Da sala dá pra ouvir o chuveiro. Mas ela nem ouviu o barulho. Pá! Ele sim! Pá! Tomou um susto! Olhão de coruja pra mim. Sabia quem eu era, é claro. Sou o dono da negra! Não falei isso, seu moço... Só pensei. Botei o fura-bolo entre meus beiços... Shhh... Pro cabra safado fazer silêncio. Ficou calado. Sentado na rede. Fui caminhando pra perto dele. Sangue nos meus olhos de raiva. Fui com força e com raiva. Sou homem de muita força quando estou com raiva. Fui olhando bem nos olhos. Ele num deu um pio. Eu trazia a faca na mão. Ele nem sequer olhou pra ela. Não tirou os olhos dos meus. O cigarro ainda acesso. Cabra sem vergonha! Pá! A primeira... no bucho. Rodei a faca pra doer dentro dele. Vai demorar pra morrer e vai ter tempo de rezar. Me benzi também. Pá! Pá! Mais duas! A rede branca ficou vermelha. Tá morto! Morreu de olho arregalado. Ou porque o medo era grande, ou porque cabra safado morre de olho aberto. Teve tempo de rezar. Se rezou, bem... se não, azar. O chuveiro parou de pingar. A nega acabou o banho. Já tinham me falado que ela tava me traindo, mas eu não acreditei. Fofoca de gente ruim, eu pensava! Invejosos, eu pensava! Não acredito em macumba, em mandinga e nem em fofoca. Olhei mais uma vez para o corpo dele. Fechei os meus olhos e imaginei o corpo dela ao seu lado. Sorri. Pela primeira vez, me senti bem naquele dia. Sentei no sofá para esperar ela. Mais uma vez, imaginei o corpo da negra todo furado. Em paz. Honra! Paz, seu moço! Ainda de olhos fechados, ouvi o gritinho dela ao chegar na sala. Tomou um susto! Nessa hora, eu tava mais calmo. Abri os olhos e a vi olhando para mim, toalha enrolada, cabelo molhado, mão na boca por causa do susto. Levantei do sofá e sorri para ela. Estava mais calmo. Fui chegando perto. Tentei até esconder a faca melada de sangue, mas notei que meu braço também estava encharcado de vermelho. Inevitável, seu moço. Cheguei bem perto. Ela estava linda. Minha preta. Molhada e cheirosa. Passei a mão em seu rosto. Encostei sua cabeça em meu ombro. Queria que ela ficasse calma como eu. Na maioria dos dias, sou homem calmo, sabe? Afastei sua cabeça. Ela não falou nada, mas assim como o safado, a negra não tirava os olhos de mim. Isso me deixou com raiva. Com a parte de baixo da faca... a parte que segura, sabe? Pois é... com essa parte, soquei seu rosto. Bem na boca... Nos dentes! Foi um golfe rápido! Pá! Como um bote de jararaca. Pá! Ela caiu no chão e a puxei pelos cabelos até onde tava o corpo do bandido. Deixei eles deitados juntos. Ele, deitado, quieto, morto... Ela, gritando com as mãos na boca. Acho que com o golpe, deve ter quebrado alguns dentes. Ela gritava e isso me deixou com mais raiva e então dei três pisadas na cara. Ela se aquietou. Ela viva e ele morto... como eu imaginei. Senti novamente a paz quando fechei meus olhos. Alma lavada, seu moço. Abri os olhos. A safada chorando enquanto eu sorria. Deitada do lado do demônio. Dessa vez me benzi antes. Ajoelhei-me e dei muitas facadas em seu corpo até me cansar. Ela não reagiu a nenhuma delas. Ficou toda furada. Como eu queria. Deitados no chão, perto da rede. Paz, seu moço. Agora sinto paz."


domingo, 22 de fevereiro de 2009

Um Simples Conto Sobre o Fascínio

Era uma noite quente. Daquelas que o sono demora e dormir se torna quase impossível. Deitado em sua cama, Danton medita sobre a vida e as paixões. Está fascinado por uma linda moça que viu no fim de semana passado. Acende um cigarro para pensar melhor. Como em um flashback cinematográfico, recorda o episódio.

A boemia faz parte da sua rotina. Sem pesos e medidas, criatura noturna, Danton migra pelos bares de Fortaleza. Sempre só. Em um deles, no qual era freguês cativo, encontra conhecidos. Pequenas politicagens e sorrisos amistosos garantem a possibilidade de tomar seu uísque sem perturbações inoportunas. Sempre só. Uísque com gelo. Obrigado.

Senta em uma mesa escondida nos fundos do bar. Abrindo um jornal esquecido na mesa pelo antigo cliente que lá estava, procura o caderno de esportes. Seu time do coração, mais uma vez perdeu a última partida. Repara que na mesa a sua frente está sentada, também só, uma linda criatura. De cabeça abaixada, lendo um grosso livro. Estava concentrada, talvez alienada a todos a sua volta. Seu cabelo comprido e caído, faz sombra em o seu rosto, tornando sua face invisível. Danton fixa o olhar nas madeixas da moça. Curioso. Cabelo ondulado e farto. Fios finos e leves fazem o contorno perfeito em sua cabeça. Castanho. Cor sóbria que ora vai clareando, e ora vai escurecendo. Forma um degradê amendoado. Chocolate e mel.

Danton desce o olhar para seus ombros e repara na linda cor de sua pele. O ambiente estava relativamente escuro, mas ele consegue ver que a moça desconhecida, possui de uma pele morena clara, bronzeada, que combina perfeitamente com a cor do seu cabelo. Além do livro estacionado na mesa, encontra-se uma garrafa de água mineral.

Maquiavélico, ele assovia alto e agudo, como se chamasse impacientemente o garçom. Queria a atenção dela e assim, olhar finalmente para seu rosto, conferindo se é exatamente como imagina. O estridente barulho quebra o raciocínio de todos. O garçom, velho e preguiçoso, sentado atrás do balcão, faz sinal que está a caminho com a sua bebida. Os outros clientes olham, mas logo voltam às suas meditações. Ela, também, como se saísse de um encanto, levanta a cabeça e olha na direção do anarquista, exagerado e barulhento. Finalmente eles trocam o primeiro olhar.

Após o estridente barulho e de ter sua concentração cortada pela inconveniência dele, ela o encara. Ele esboça um singelo sorriso tímido e amarelo, que foi inesperadamente correspondido por outro sorriso dela. Rosto redondo de menina. Linda. Flor. Possuía uma tez rosada como sofresse de uma timidez natural. Pouca maquiagem. Beleza discreta e fascinante. Olhos pequenos, discretos e puxados. Nariz agudo, nobre e perfeito. Beleza ímpar. Boca bem desenhada com lábios simétricos e gentis. Apetitosos. Ao sorrir, clareia todo aquele ambiente, como se ascendessem uma grande luminária. Repara em seus dentes. Brancos e iguais. Os dois dentes da frente são milimetricamente separados, que dá um charme incomum naquela obra de arte. A Lolita de Nabokov. A Eugénie de Balzac. Mais uma vez, Danton se fascina à primeira vista.

Vestida com uma simples camiseta branca e jeans (ele repara em tudo), depois do amistoso sorriso, ela retoma a sua leitura enigmática. Um sorriso cordial já foi o bastante e serve como prêmio de consolação para o jovem. Ele continua observando, fascinado, hipnotizado. Presta atenção em todos os sutis movimentos dela. Observa como, ao ler sozinha, compenetrada, ela move lentamente os lábios. Cada movimento é uma poesia.

Passando um quarto de hora, a moça fecha o livro, deposita uma cédula embaixo do copo vazio e vai embora.

Deitado na cama, Danton pensa nela. O que ela estaria fazendo sozinha naquele bar? Que livro lia? Qual seu nome? Talvez goste de poesia e música internacional. Jazz, rock e música moderna. Quem sabe ama cinema europeu e crie animais nos quais recebem carinhos e mimos. Pequenos felinos ou cães peludos. Ela teria alguém? Alguém que a faria sorrir? Como quem colocou o dedo na tomada, Danton sofreu o choque do fascínio. O choque da curiosidade. A frustração de não ser correspondido. Fará de tudo para encontrar novamente aquela moça. Migrará por todos os bares e livrarias da cidade. Terá aquela flor em seus braços. Beijará sua boca e irá cheirar seu cabelo (cheiro de flor). Cria planos e ensaia possíveis diálogos. Enfim o sono chega dominante. Danton lentamente dorme. Talvez sonhe com ela.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Crônica do 433

Era (e ainda deve ser) um ônibus vermelho-alaranjado. Fazia a linha Vila Isabel\Leblon e tinha o numero correspondente 433. O coletivo cruzava parte da Zona Norte carioca até a Zona Sul. Vinha para o Flamengo, seguindo pela orla da Praia de Botafogo. Atravessava os dois túneis: o túnel que dá para ao Shopping Rio Sul e o outro que acaba na Avenida Princesa Isabel, adentrando nas artérias de Copacabana.

Sempre fugi do sono, uma vez que não via lógica em acordar antes das dez da manhã. Às vezes não dormia e mesmo assim ia ao colégio, sonâmbulo ou meio zumbi. Às vezes, simplesmente não ia. O fato é que nesse período estava mais dedicado aos estudos, pois com algum sacrifício, minha mãe me matriculara no Colégio Anglo Americano. Era um tradicional colégio localizado em Botafogo que só tinha aulas no período da manhã. Contrariando minha vontade, me esforçava em acordar cedo.

Pegava o 433 na Avenida Osvaldo Cruz no Flamengo, no último ponto antes da praia. Era perto do apartamento no qual morávamos na Rua Senador Vergueiro. Exatamente as seis e quarenta e cinco da manhã o previsível coletivo parava. Já dentro, acomodado ou não, ao caminho para o colégio, admirava toda a paisagem natural e urbana como se a visse pela primeira vez. A linda praia de Botafogo acortinada pelo Pão de Açúcar, o edifício Argentina, o edifício espelhado da Telemar, o resto do Aterro do Flamengo com seus chafarizes, mendigos e estátuas e o Clube Botafogo. No túnel, puxava a cordinha e descia para mais um dia de física, matemática e química. Coisas inúteis e sem poesia, diferente de toda a paisagem admirada.

Lembro-me claramente da espera pelo ônibus. Chegava ao ponto e acendia um cigarro (os maravilhosos cigarros dos meus quinze anos). O bendito transporte nunca permitia terminar-lo, pois como já disse, ele era pontual e eu não.

No inverno carioca, as manhãs frias são cobertas por uma garoa leitosa e cheirosa. O céu é cinza e o percurso até o ônibus era, de certa forma, prazeroso. Penetrava a névoa com meu walkman. Cantava mentalmente, desviando das bostas de cachorros acumuladas na calçada. No verão, já fazia calor de manhã. Acordava mais mal-humorado, menosprezava o walkman e as bostas fediam mais.

Lembro dos personagens que faziam parte desta minha viagem de vinte minutos até o colégio. Tinham os fixos e os aleatórios. Fixos como o homem gigantesco que subia dois pontos depois do meu. Era halterofilista ou coisa do tipo. Músculos enormes. Uma anomalia. Ocupava sozinho dois bancos e não se preocupava com os passageiros que iam em pé; O peruano que era muito parecido com o Che Guevara; Ainda tinha o homem de paletó e os outros garotos estudantes sonolentos como eu. Figuras aleatórias e inesquecíveis quebravam a rotina e divertiam os espectadores. Uma vez adentrou uma mulher que parecia um cotonete (magrinha e com cabelos curtos e brancos); Um punk com toda a indumentária anarquista, voltando logo cedo da manhã, quem sabe, de alguma festa absurdamente louca que coisas incríveis aconteceram. Outra turma de passageiros que nunca me esquecerei, eram os nordestinos que iam ao trabalho. Fazia questão de sentar perto deles e acompanhar seus diálogos, seus sotaques e suas estórias, matando um pouco a saudade da minha terra natal.

Fiz inúmeros amores platônicos nesse trajeto: Meninas e mulheres. Moças lindas ao caminho do colégio, da faculdade e do trabalho. Às vezes ia mais arrumado e caprichado. Rezava para sentar perto das minhas musas e ensaiava diálogos possíveis. Como todo sonhador, sonhava muito e realizava pouco. Os diálogos possíveis eram impossíveis, pois quando sentava ao lado delas, ficava mudo. Nunca fui notado por nenhuma delas.

O tempo passou e fiquei mais sério e menos poético. A rotina e o mundo repleto de informação, nós obriga a apagar da cachola certas memórias. Porém, algumas, eu me recuso em abandonar. Como disse, o tempo passou e as coisas estão diferentes. Impossível escrever sobre minha adolescência, na sua mais completa essência. Nasci em Fortaleza, mas tornei-me homem no Rio de Janeiro. E assim a vida levou-me de volta para a terra das minhas origens (terra também querida) e abandonei, de fato, a outra cidade amada. Infelizmente muitas coisas já apagaram, mas outras, felizmente, insistem em permanecerem latentes. Sinto saudades. Saudades dos meus quinze anos, do Rio e do ônibus 433 vermelho-alaranjado.