O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

terça-feira, 31 de março de 2009

O Jazz Morreu.

Estava mal da saúde. A nova moda era a nova gripe. O médico receitou nove medicamentos. Corticóides, antibióticos e afins. Bronquite braba. Sem álcool e sem cigarros por um mês. Quase tratamento de choque. O pulmão chiava e o corpo suava. O suor exalando um odor atípico. Não era o odor característico. Não era simplesmente suor. Era o cheiro dos remédios; Um cheiro de química. Suor e calor que não o deixava dormir.

A vida continua mesmo com os olhos em brasa. Ele acordou cedo. Procura em vão a carteira de cigarros e lembra-se da proibição. Frustração. Ao lado da cama, as caixinhas de comprimidos. Ingere o primeiro do dia. Depois do banho demorado, o corpo já transpira. Pequenas gotas de suor aparecem na testa e no buço. A pele limpa, porém oleosa. Mal humor.

A crise de tosse ataca de hora em hora. O catarro preso no peito se rebela em sair. A produção mucosa é crescente. O café é amargo e não tem açúcar que adoce. Ele cheira a própria mão e ainda consegue destingir, bem ao fundo, o cheiro de fumaça e nicotina. Não sairá nunca. Passa perfume, mas minutos depois, a fragrância desaparece.

No engarrafamento, fecha os olhos e sonha. Ouve jazz no rádio do carro. Música para relaxar, mas não relaxa. Impossível, pois é dia e faz calor. Pensa numa deliciosa dose de uísque e estrala a língua. Proibição também. Ele nunca relaxa de dia.


Busca nas ruas, através dos olhos das pessoas, alguma resposta. Algo que lhe fará ter um dia melhor. Mas tudo é típico. As pessoas são as mesmas e estão tão perdidas como ele. Algumas parecem doenças. Não estão gripadas e com bronquite como ele, mas estão doentes. Perdidas. Problema delas. Ele tem que resolver os seus. Chega de pensar nas congruências! Tem de curar a bronquite com remédios, eucalipto e hortelã. Cada um com os seus problemas.

Sozinho no elevador do prédio em que trabalha, desafiando a si próprio, mostra os dentes para o reflexo do espelho. Estão amarelados. Os dois caninos desgastados. Repara no desgaste. A gravata velha, a gola moída e o paletó fubá. As unhas não foram cortadas. Ainda é manhã e já está molhado de suor. O mau humor dá lugar a uma depressão. Insegurança. É um homem superficial. A aparência é negligente. Anda com olheiras. Tudo que precisa é de um pouco de fantasia. Uma imprevisibilidade chula e barata. Uma aventura. Algo para espantar o tédio e o vazio do existir.

Há tempos que não vê beleza nas coisas. Até a mais bela poesia se transformou em pastelão. Não tem paciência, não tem gana e não vê graça. Só tem o jazz, o cigarro e o álcool. Quando entorpecido, vê tudo de algum ângulo menos sacal. Mas está proibido por ordens médicas de exercitar a percepção. Hoje está completamente sóbrio. Sente-se imbecil. A realidade é sem graça. Como queria correr, sentir graça e dar graças. Rir como riem as crianças. Não entende aonde os poetas encontram inspirações. Tudo para ele é intragável. Detesta o sol, a rotina e os normais. Fecha o punho direito e sente vontade de socar o espelho. Socar a própria imagem refletida. Imagina-se aplicando nele próprio um soco
no supercílio. Com certeza abriria uma fenda que jorraria sangue. Mas não pode fazê-lo. Infelizmente não atingiu tal nível de insanidade. Ele é superficial e não poderia piorar a própria aparecia já desgastada.

Na noite anterior, sem pregar os olhos, refletiu sobre a sua vida. Fez planos e promessas. Na vitrola, velhos discos de Miles Davis, Dave Brubeck e Thelonious Monk. Fantásticos! As melodias experimentais preenchem de alegria o espaço vazio do apartamento. No lar mofado e abandonado, sente um ímpeto de esperança. Amanhã, o dia será melhor. Mas acordou como sempre acorda; acabado e desgastado. O som acabou e o sol raiou. O céu azul da manhã cansa e ele se esquece de tudo. Toda a esperança se foi. Além do mais, o jazz morreu e está enterrado. Miles e Monk morreram e Brubeck virou um velho chato.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Ainda Nostálgico...

Era um tal de fazer nada, gostoso. Domingo, acordando de um sábado aventureiro, um pouco antes do almoço, fugia para o antigo sítio do meu pai. Eu e Chica, minha cadela companheira. Os dois no carro. Eu, preguiçoso, abastecido de cigarros e vestindo óculos escuros. Chica, tentando se equilibrar em pé no banco do passageiro - cabeça para fora da janela, língua mole e latidos fáceis. Pegávamos a estrada do Velho Timbó.

Nessa época, movido por algumas questões paralelas, meu pai não mais freqüentava o sítio aos domingos e lá não apareciam seus convidados. Enfim, o sítio era meu. Metaforicamente usucapido.

Descia do carro e respirava fundo. Adorávamos (Chica e eu) aquele lugar. Enquanto dava as primeiras ordens ao nosso caseiro e amigo Luis, Chica corria rumo à diversão.

Tudo era impecável e bonito. A casa era pequena e toda pintada de cor-de-rosa. Era rodeada por uma ampla varanda. Redes e espreguiçadeiras ficavam à disposição. Tudo era organizado. Muito verde. Plantas e mais plantas. As árvores de copas fartas deixavam o terreno fresco e sombreado. Lá, dependendo da época do ano, tiravam-se tudo. Tinha coco, mandioca, caju, carambola, limão, mamão, acerola, ata, serigüela, pimenta, tamarindo, manga e abacate. Criávamos peixes num grande tanque de cimento construído perto do deck. Tomava meu uísque no tanque de água corrente. Uma bica molhava minha cabeça e os pequenos carás,beliscavam os dedos do meu pé.

O sítio era cuidadosamente administrado pelo Luis. Caseiro e homem de confiança. Calado e de pouco riso. Moreno de sol, realizava o serviço de forma mais que discreta. Era quase invisível. Um fantasma. Só notávamos sua presença depois de prestar bastante atenção. Ele e Socorro, sua mulher, cuidavam de tudo. Alimentavam os animais e os patrões sem preferência e hierarquia. Luis comandava até o churrasco quando requerido. Socorro cuidava da casa e do almoço. Mãos mágicas. Fazia deliciosas galinhas e patos cozidos de se comer rezando.

Bem alimentado e com algumas doses de uísque na cabeça, deitava na rede preferida e esperava o tempo passar. Chica, agora cansada de correr atrás das galinhas d’angolas, descansa sob a minha sombra embaixo da rede. O domingo passava devagar. O frio da serra de Pacatuba duelava com o mormaço natural. O céu azul e sol brilhante deixavam-me relaxado. Todas as janelas da alma abertas.

Antes de ir, um último mergulho na piscina. Algumas braçadas para alongar as costas. Enxugava-me com a toalha com cheiro de eucalipto.

Já com o carro ligado, dava a mão ao caseiro, agradecido pela recepção e chamava a cadela – Vamos, Chica! Pra casa! Acabou a farra! – Ela vinha correndo, disposta e também agradecida por mais um domingo de diversão. Ganhava o último afago de Luis e saltava para o carro.

Hoje, o sítio tem outro dono e não tenho mais notícias do meu velho amigo caseiro fantasma e os domingos em casa custam mais a passar. Olho nos olhos da Chica, e vejo que ela também sente falta das suas amigas galinhas d’angola barulhentas.

terça-feira, 17 de março de 2009

O Fim da Guerra

De tarde fui visitá-la. De manhã, ela pessoalmente pediu-me para levar ao hospital alguns objetos pessoais, incluindo seu velho travesseiro de estimação. Estava magra e mais escura. Ar de fadiga. Mais uma internação no hospital. O tumor não deu trégua e previsivelmente a guerra chegava ao fim. Ao entrar no quarto, senti um arrepio. Entreguei seu travesseiro xodó e sentei diante do seu leito.

Estávamos sós no quarto. O seu companheiro fora em algum lugar perto. Não tardaria em chegar. Por um momento imaginei que minha visita era inoportuna. Talvez, esse pequeno intervalo de solidão era o desejado por ela. Atrapalhei, mas satisfiz seu desejo. Quanta saudade tinha do velho travesseiro (e de mim). Ao ver-me, os olhos brilharam. Nunca minha visita seria inoportuna.

Com o seu humor típico, perguntou quando eu iria casar. Respondi que ainda iria demorar alguns anos. Replicou com ironia; Disse que teria que adiantar meus planos, pois ela gostaria de estar presente. Falava com esforço. A camisola verde. O lençol verde. O quarto era apertado. Claustrofóbico. O soro na veia.

Antes de ir (ultima vez que a vi com vida), com os olhos fechados, repuxando na memória, a garganta presa de dor e emoção, contou-me uma história do seu tempo de menina. Falou-me da vez, quando estudante de uma daquelas antigas escolas normais que as alunas eram internas, uma colega misteriosamente apareceu grávida. Ninguém sabia quem era o pai. Escândalo para os pais da menina e para os padres e as freiras que administravam a instituição. Alegria, entusiasmo e curiosidade para todas as outras jovens. Nas aulas de tricô e costura (disciplinas curriculares da época), todo o enxoval foi minuciosamente produzido. Muito luxo para a caçula. A criança foi criada por inúmeras mãezinhas.

Fim de tarde. Chuva fina em Fortaleza. Ao caminho da faculdade, recebo a ligação. Minha mãe balbuciava no telefone, ordenando, sem muita explicação que voltasse ao hospital imediatamente. A guerra tinha acabado. O câncer foi vitorioso e minha avó, magra e de camisola verde, deitada com o seu travesseiro, morrera.

Pensei na menina grávida. Pensei na minha avó morta. Há poucas hora, ela estava viva e contou-me uma história. A última história. E estava sozinho com ela. Nem minha mãe e meu avô tiveram o privilégio de ouvir a última crônica da dona Dirce. Só eu. Quis esquecer a história. Impossível. Como uma praga, todas as palavras fixaram na minha cabeça e pude visualizar todos os personagens. Visualizei minha avó ainda menina, tricotando sapatinhos de tricô.

Chegando ao quarto do hospital, estavam minha mãe e um médico. Ela morrera há pouquíssimo tempo. A cabecinha virada para o lado. A feição de dor. A boquinha aberta. Como sofreu... Todo o peso do mundo estava nos meus ombros. Minha mãe, que também é médica, tenta ficar racional. Inconformada, balança a cabeça. O médico faz algumas anotações numa prancheta ordinária. Olho para minha avó. Sinto frio, calor e desconforto. Abraço minha mãe e vou fumar um cigarro. A chuva fina caía implicante. Mês de março é mês de chuva.

A noite caminha rápida. Passam horas. Chegaram familiares e amigos. Lágrimas e lamentações. Depois chegou o carro funerário. Dois fortes homens, indiferentes e acostumados descarregaram o caixão e as flores. Fazem tudo. Colocaram o corpo cuidadosamente e preenchem toda a superfície com flores brancas e amarelas com um cheiro enjoativo. O velório seria no próprio cemitério e o corpo deveria ser transportado assim que tudo organizado. Fui incumbido de acompanhar o grande carro branco do hospital até o cemitério. O carro vai devagar e eu atrás dirigindo o meu. O caminho era longo e a madrugada caia. Calado no carro refletia desconexões. Revolta e tristeza. Como a vida é frágil. A menina grávida. Minha avó menina. Minha mãe chorosa. Minha mãe menina. Minha mãe morta. Minha avó morta. A chuva não pára. A vida é curta. O câncer é terrível. Os sapatinhos da criança que teve várias mães. O carro funerário anda muito devagar. Tem um caixão dentro do carro. O corpo da minha avó. O tempo. A chuva. A morte. Um dia serei eu. Minha mãe. Calado. Sozinho e insignificante. Meu carro vermelho quer acelerar. Fugir daquela situação. Fugir da realidade. Sozinho. (...) E isso aconteceu há exatamente um ano. Há um ano, ouvi a última história dela. Hoje me sinto triste. Acompanhei a guerra de perto e vi que ela é má.