O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

terça-feira, 17 de março de 2009

O Fim da Guerra

De tarde fui visitá-la. De manhã, ela pessoalmente pediu-me para levar ao hospital alguns objetos pessoais, incluindo seu velho travesseiro de estimação. Estava magra e mais escura. Ar de fadiga. Mais uma internação no hospital. O tumor não deu trégua e previsivelmente a guerra chegava ao fim. Ao entrar no quarto, senti um arrepio. Entreguei seu travesseiro xodó e sentei diante do seu leito.

Estávamos sós no quarto. O seu companheiro fora em algum lugar perto. Não tardaria em chegar. Por um momento imaginei que minha visita era inoportuna. Talvez, esse pequeno intervalo de solidão era o desejado por ela. Atrapalhei, mas satisfiz seu desejo. Quanta saudade tinha do velho travesseiro (e de mim). Ao ver-me, os olhos brilharam. Nunca minha visita seria inoportuna.

Com o seu humor típico, perguntou quando eu iria casar. Respondi que ainda iria demorar alguns anos. Replicou com ironia; Disse que teria que adiantar meus planos, pois ela gostaria de estar presente. Falava com esforço. A camisola verde. O lençol verde. O quarto era apertado. Claustrofóbico. O soro na veia.

Antes de ir (ultima vez que a vi com vida), com os olhos fechados, repuxando na memória, a garganta presa de dor e emoção, contou-me uma história do seu tempo de menina. Falou-me da vez, quando estudante de uma daquelas antigas escolas normais que as alunas eram internas, uma colega misteriosamente apareceu grávida. Ninguém sabia quem era o pai. Escândalo para os pais da menina e para os padres e as freiras que administravam a instituição. Alegria, entusiasmo e curiosidade para todas as outras jovens. Nas aulas de tricô e costura (disciplinas curriculares da época), todo o enxoval foi minuciosamente produzido. Muito luxo para a caçula. A criança foi criada por inúmeras mãezinhas.

Fim de tarde. Chuva fina em Fortaleza. Ao caminho da faculdade, recebo a ligação. Minha mãe balbuciava no telefone, ordenando, sem muita explicação que voltasse ao hospital imediatamente. A guerra tinha acabado. O câncer foi vitorioso e minha avó, magra e de camisola verde, deitada com o seu travesseiro, morrera.

Pensei na menina grávida. Pensei na minha avó morta. Há poucas hora, ela estava viva e contou-me uma história. A última história. E estava sozinho com ela. Nem minha mãe e meu avô tiveram o privilégio de ouvir a última crônica da dona Dirce. Só eu. Quis esquecer a história. Impossível. Como uma praga, todas as palavras fixaram na minha cabeça e pude visualizar todos os personagens. Visualizei minha avó ainda menina, tricotando sapatinhos de tricô.

Chegando ao quarto do hospital, estavam minha mãe e um médico. Ela morrera há pouquíssimo tempo. A cabecinha virada para o lado. A feição de dor. A boquinha aberta. Como sofreu... Todo o peso do mundo estava nos meus ombros. Minha mãe, que também é médica, tenta ficar racional. Inconformada, balança a cabeça. O médico faz algumas anotações numa prancheta ordinária. Olho para minha avó. Sinto frio, calor e desconforto. Abraço minha mãe e vou fumar um cigarro. A chuva fina caía implicante. Mês de março é mês de chuva.

A noite caminha rápida. Passam horas. Chegaram familiares e amigos. Lágrimas e lamentações. Depois chegou o carro funerário. Dois fortes homens, indiferentes e acostumados descarregaram o caixão e as flores. Fazem tudo. Colocaram o corpo cuidadosamente e preenchem toda a superfície com flores brancas e amarelas com um cheiro enjoativo. O velório seria no próprio cemitério e o corpo deveria ser transportado assim que tudo organizado. Fui incumbido de acompanhar o grande carro branco do hospital até o cemitério. O carro vai devagar e eu atrás dirigindo o meu. O caminho era longo e a madrugada caia. Calado no carro refletia desconexões. Revolta e tristeza. Como a vida é frágil. A menina grávida. Minha avó menina. Minha mãe chorosa. Minha mãe menina. Minha mãe morta. Minha avó morta. A chuva não pára. A vida é curta. O câncer é terrível. Os sapatinhos da criança que teve várias mães. O carro funerário anda muito devagar. Tem um caixão dentro do carro. O corpo da minha avó. O tempo. A chuva. A morte. Um dia serei eu. Minha mãe. Calado. Sozinho e insignificante. Meu carro vermelho quer acelerar. Fugir daquela situação. Fugir da realidade. Sozinho. (...) E isso aconteceu há exatamente um ano. Há um ano, ouvi a última história dela. Hoje me sinto triste. Acompanhei a guerra de perto e vi que ela é má.