O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Hérnia de Disco ou Ensaio Sobre as Enfermeiras


“Hérnia de Disco.” Assim foi diagnosticado o meu mal. Tudo começou com uma dor na lombar. Ignorei inicialmente. Acontece que sou acostumado às essas dores musculares intermitentes e, como de praxe, o único remédio foi uma massagem feita por mãos confiáveis.

Como não premeditável, a massagem piorou a minha situação. De forma imediata, a dor desceu para a perna direita. Senti como levasse uma chicotada e da cama não mais sairia. A culpa não foi da massagista. Eu pedi a massagem. Pedi e instrui o local da dor e a sua intensidade.

Fui obrigado a procurar um profissional.

Era o médico um sujeitinho típico, meio aloirado que combina trajes brancos e sapatos marrons. Mandou-me sentar e não me olhou nos olhos. Depois de algumas perguntas sobre a minha dor, afirmou à queima roupa que eu era possuidor de hérnia de disco, mas assim mesmo exigiu à realização de uma radiografia.

Feito o raio-x e esperando a reconsulta, analisei atentamente o largo retângulo negro. Observei os ossos da minha vértebra impressos e nada de estranho achei. Mas de ossos, principalmente os meus, nada entendo.

“Sua situação não é grave, mas requer cuidados.” Disse-me o médico sem piedade. “Não vejo nada na radiografia, e por nada ver, digo que está com hérnia de disco.”

Não entendi a sentença. Como sabe que tenho hérnia de disco se não a vê? Coisa mais estranha... Será que não pode ser outra coisa? Tensão, estresse, fadiga ou frescura? Qualquer coisa? Palpite...

- Começou na lombar?

- Sim

- Desceu para as pernas?

- Sim.

- Sente formigamento nos dedos dos pés?

- Sim.

- Hérnia de disco.

Tive vontade de perguntar o motivo da realização da radiografia se ele, desde logo, sabia a enfermidade, mas deixei passar. A dor instalada em mim camuflava todo o meu senso cínico.

Armado com o seu diploma, me entregou o receituário que continha o tratamento a ser realizado e os nomes dos medicamentos receitados. A dor incomodava tanto que não dei atenção ao que dizia, mas alertou-me as palavras “injeções”, “imediatamente” e “queira me acompanhar”.

Segui o doutor para uma porta lateral que entrava diretamente no ambulatório. Era um espaço considerável, subdividindo por diversos cubículos particulares, separados por um sistema de cortinas de plástico verde. Pela impressão que tive, todos os outros leitos estavam vazios e um grupo de enfermeiras conversava alegremente no salão (ociosidade do horário).

Tirei os sapatos e, com certa dificuldade, deitei na maca. Minha feição de dor causou simpatia à enfermeira que me auxiliava.

As enfermeiras são um grau singular entre todas as outras mulheres. Se tratando da paciência, tolerância e amor ao seu necessitado, formam uma espécie completamente diferente das demais. “Vai passar... vai passar.” disse-me.

Sempre tive o dom de causar piedade às moças quando necessito. Malandragem nata. Posso se quiserem (ou se eu quiser), escrever ensaios sobre elas.

Sei que as enfermeiras tendem a ser matriarcais, pois tratam os pacientes como filhos. São mães, irmãs, mulheres e amantes. Como não ter pena do jovem com hérnia de disco? Tratamento doloroso. Doença dolorosa. Enquanto o médico é o braço da cura, a enfermeira é o coração. O lado humano da medicina. É uma profissão de prestígio e respeito, pois é disciplina de estudo a Filantropia Universal. Se eu fosse machista, coisa que eu não sou, diria que são as ideais para casar. Homem casado com enfermeira é homem feliz.

Notáveis profissionais de notável benevolência. São sensíveis e fungíveis (no melhor termo da palavra), pois são iguais. Todas possuem, metaforicamente falando, uma silueta psicológica em comum. Será reflexo da formação familiar, ou adquirida com os anos de labor? Todas elas possuem o mesmo jeito. A mesma aura. O modo particular de falar graciosamente, de andar e de se comportar... Como um balé coreografado por dançarinas médias, porém esforçadas. Nenhuma entende Miles Davis ou lêem Neruda. Entendam-me que não vejo defeito nisso, é lógico. Qual a necessidade de mais sensibilidade? Deixe isso paras as arquitetas ou dentistas, pois são elas, pedras sem amor. As enfermeiras são sensíveis de natureza. Mesmo sendo todas iguais.

Sentia dor e ela prometeu dar-me um remedinho que iria doer um pouquinho, mas em pouco tempinho eu estaria bonzinho (é engraçado a tática dessas pequenas em usar as palavras no diminutivo para assim, quem sabe, tranqüilizar o enfermo). “És uma santa.” Pensei.

Olhando nos meus olhos, ela perguntou se eu tinha medo de injeções. Quis negar, mas porque mentir? Sim. Tenho medo de injeções. Quem não tem? Não conheço ser racional que goste de injeções. Dei meu braço esquerdo para ela escolhesse uma veia suscetível à aplicação da agulha. “Está procurando em vão, pois minhas veias são escondidas.” Brinquei com coquetismo. “Veias tímidas.”

Chegou mais outra enfermeira. Mais outra e mais outra. No pequeno recinto, estávamos eu, minha dor e quatro simpáticas moças de vestias brancas. Duas em cada braço à procura de uma veia. Ganhei tapinhas implicantes nos braços para provocar o aparecimento de algum vaso sanguíneo, mas tudo falhou. O vaso requerido simplesmente se escondia delas e de mim.

Até que estava gostando da brincadeira e mesmo elas sendo bastante parecidas, esforçava-me em decorar seus respectivos nomes. Essas moças, além de se parecerem, psicologicamente falando, possuem traços idênticos. Indescritivelmente parecidas. Beleza moderada, mas com corações colossais... Deixem as mulheres realmente belas paras os homens sem imaginação, assim dispôs Proust...

Mas para toda regra, existe a exceção:

Uma quinta enfermeira entrou no cubículo. Realmente feia e mal humorada. Com um olhar de repulsa, atrapalhou tudo ao colocar ordem na casa. Expulsou as mocinhas para ocupar todo o espaço que restava entre mim e as cortinas.

Segurando a minha mão, pediu para apertá-la e soltá-la repetidas vezes. Contra minha vontade, uma grande veia azul saltou da mão que foi imediatamente, sem qualquer piedade, encravada por uma seringa conectada a uma sonda, levando o medicamento já diluído no soro pendurado no cavalete.

Ela deixou-me sozinho. Olhava para o soro que pingava letamente. Todo aquele líquido químico entrava no meu corpo devagar. Senti uma pequena náusea e dor de cabeça. Queria a presença das princesas, mas só quem me visitava para avaliar o ritmo do conta-gotas era a Madrasta Malvada.

Ora ardia, ora suava frio.

A bruxa voltou mais duas vezes para repetir o processo intravenoso. Mais dois remédios. Mais dois frascos de soro. A hérnia respondia ao tratamento com dores vingativas que latejava todo o meu lado direito do corpo.

O tempo demorava a passar e ouvia ao longe a fofoca moderada das senhoritas. Rizinhos abafados com as mãozinhas. Poético seria não estar sentindo a dor que sinto. Sozinho. Observando uma infiltração no teto.

Fui liberado após o terceiro recipiente de soro. A enfermeira má fez um curativo em forma de x no local da picada. A dor não passou nem um pouco.

Ao sair da sala, humilhado e doente, não quis ser reparado pelas meninas de branco que conversavam no mesmo cantinho do ambulatório. Cabeça baixa e puxando a pata traseira, fui embora como um cachorro ordinário.

Agora a dor começou a melhorar. Os remédios modernos têm efeitos instantâneos. Avalio a cura chutando o ar e esticando a perna. Quando a dor reaparece, me arrependo dos alongamentos imprudentes. Não tenho culpa se o medicamento me deixa com pouca noção e raciocínio lento.

Mas amanhã começam as sessões de fisioterapia. Sim... As fisioterapeutas também são singulares (tão singulares quanto às enfermeiras). Desculpem-me... É o efeito do remédio.


terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Conto de Natal


Ele, diferente do acontecido na prosa de Dickens, na noite de natal, não recebeu a visita dos espíritos do passado, presente e futuro. Apareceu cedo nas casas de parentes. Duas visitas. Na primeira, abusou da ceia. Na segunda, abusou do uísque. Atirou sorrisos falsos para as velhas tias que não via há anos e não se surpreendeu com a presença de uma nova criança na família: O nascimento da filha de uma prima feia representava mais uma novidade irrelevante na sua vida.

Os natais passados foram mais fáceis. Ele pensa. Tudo seria mais fácil se ela ainda estivesse ao seu lado. “Ela.”

Foi para casa, cedo, bêbado e sozinho. Ignorou o único presente que ganhara (uma carteira, talvez?). Não se deu o trabalho de desembrulhar a caixa retangular coberta por um papel amarelo. Deitou-se na cama com a roupa que estava e esperaria uma ligação (fariam as pazes), ou quem sabe, a visita do Papai Noel. Dormiu pateticamente confabulando fantasias.

O sol raiava na manhã do dia 25. Nesse mesmo dia, há mais de dois mil anos, o menino Jesus estava parido e alimentado, cercado de mirra, incenso e ouro.

O telefone tocou estridente. Com certeza o uísque ingerido na véspera não era confiável. Sua cabeça reclamou a ressaca quando ele abriu os olhos.

“Um acidente horrível!” Falava uma voz feminina e chorosa no outro lado da linha.

“Quem fala?” Perguntou intrigado.

“Um acidente horrível...” Repetiu a sinistra voz.

“Quem está falando? Quem é?”

Sempre detestou telefones, mas quando ainda eram namorados, sua ex convenceu-o a instalar um em seu tranqüilo lar. “A grande arte de Graham Bell.” Pensava ele. É verdade que já possuía um telefone celular, mas usava-o unicamente como instrumento profissional, pois precisava estar comunicável com os clientes e o sócio. Acabado o horário comercial, fazia questão de desligá-lo. A moça reclamava a falta de comunicação e depois de tanto pleito, ele cedeu: Comprou uma linha residencial e um aparelho moderno e sem-fio. Azul. Até virou rotina suas conversas telefônicas, cada qual em sua casa, antes de dormirem. Com o tempo, o homem reconheceu que esses diálogos noturnos ajudavam a chegada do sono.

A verdade é que na maioria das noites dormiam no apartamento dele, mas não moravam ‘oficialmente’ juntos (assim ele quis). “Cada qual na sua. Um dia, juntamos as coisas; Teremos filhos, cachorro, gato, papagaio e empregada. Mas para isso precisamos de dinheiro.” Juntaram dinheiro por sete anos. Estavam há dois meses separados e o maldito telefone continuava na sua cabeceira.

Chegou rápido no hospital. A misteriosa voz ao telefone era de uma amiga do casal. Sônia. Com o término da relação, a amiga imparcial tomou as dores da moça. Nada mais lógico. Na crise, elas sempre se aliam. Sempre se entendem. Mania de mulher em ser mártir.

Na ligação, Sônia não conseguiu explicar o ocorrido de forma clara. Narrou somente, demonstrando desespero, que ainda de madrugada, há algumas poucas horas atrás, se envolvera num acidente. Poupando tempo, o homem somente solicitou o endereço de onde ela estava (um hospital; perto de onde ele morava), prometendo a prontidão na chegada. O jato mais moderno não chegaria mais rápido. Seus olhos ardiam e a cabeça parecia explodir. Maldito Natal. Maldito telefone. “Graham Bell merecia ser abortado quando ainda era um feto escocês.”

A manhã nascendo e o hospital vazio. Correu pelo corredor à procura de Sônia, até encontrá-la sentada num banco, alheia e aturdida. As mãos nos olhos não escondiam as incontáveis lágrimas derramadas. Estava em completo estado de choque.

Vendo a ex-amiga naquele estado de obscuridade e lamentação, ele começava a entender qual a sua ligação com o misterioso episódio ocorrido.

Na véspera, enquanto ele gastava suas últimas doses de paciência com familiares desnecessários, a sua ex comemorava a noite da tradicional data cristã com a amiga Sônia e com outro homem. Um novo amigo. Mais que amigo. Sônia explicou que, ao acabar o namoro, sua amada se envolveu com o homem mais velho, ex-professor da faculdade da moça. “Ela estava sofrendo muito e carente. Se reencontraram por acaso. Ela sofreu muito por você...” Falou a amiga. “Entenda... Ainda não era nada sério. Namorico... um mês. No máximo!” O homem esperou pelo resto da estória.

“Fomos jantar naquele restaurante perto da livraria. Você sabe qual é... Só nós três... Ela ficou com pena de mim, pois não tinha companhia para a noite de Natal.” Sônia pausava a narrativa para assuar o nariz e chorar. “Bebemos vinho. Muito vinho. Eles me ofereceram carona já na ida, mas receosa como sou, não quis atrapalhar e fui e voltei no meu carro. Encontramos-nos lá...”

“Ela estava tão feliz... Tão bonita...” Continuou Sônia com as lágrimas nos olhos. “Ganhou uma corrente dele. De ouro com um pingente em forma de coração...”

“O que aconteceu?! Fala, mulher!” O silêncio dele é rompido.

“Segui o carro do Professor. - Chamávamos assim por brincadeira. Sempre, desde novas, apelidamos os paqueras. Ela batizava os meus e eu os dela. Você era o Chato. - Ele bebeu demais. O Professor bebe mais do que você... E ela que sempre reclamou dos seus exageros. Preocupei-me com estado de embriaguês dele e resolvi segui-los. Mas o cara era rápido e não consegui acompanhar. Só alcancei quando eles pararam.” Nesse momento, Sônia fez uma pausa, respirou fundo, tossiu e continuou: “Bateram de frente num poste. Parei o meu carro paralelamente e os vi. Inconscientes. Muito sangue.”

“Fiz o reconhecimento do corpo dela.” Disse Sônia. “Vão levá-los ao IML. Não tenho coragem de ligar para os pais dela... Foi por isso que...” Mas ele não deixou que a ela concluísse e deu as costas, se distanciando e deixando-a aos prantos.

Por um momento parou. Sentiu a vista nebulosa. Tonto. Sem conseguir raciocinar. Sua cabeça não operava de forma racional. Ela morreu? Era uma piada, uma brincadeira.

Pensou em se desesperar. Rodava em torno de si mesmo e sem saber aonde colocar as mãos, insistia em passá-las nos cabelos, puxando-os levemente. Tinha que ver para crer.

Namoravam há sete anos. Ele, advogado, escritório próprio com sócio, secretária e estagiário. Amante dos livros, da tranqüilidade e do seu espaço. Um antissocial; mal-humorado que desacreditava na maioria das pessoas. Ela, recém formada em economia. Figura bonita, simplória e paciente. Amante dedicada, porém nada submissa. Signo ambíguo. E enfim, como sempre acontece, o amor não teve poder contra o tédio mortal que ataca a vida dos casais.

Sempre souberam que não poderiam durar mais de sete anos.

O escritor inglês Somerset Maugham afirma que é impossível um relacionamento sobreviver ao quinto ano, uma vez, os dois com total independência em seu mais amplo sentido. A independência exige independência.

O relacionamento teve um fim ardido. Ofensas que configuravam o amor ainda latente e impossível. Ele pensava em Maugham e às vezes comparava seu romance como os contados por Petrônio e Shakespeare. Formavam um casal bomba.

Caminhou rápido pelo corredor do hospital até encontrar sentada num cubículo ordinário batizado de Recepção, uma enfermeira caricata e gorda.

É difícil acreditar na morte repentina, por isso precisava ver. Seus joelhos tremiam, mas tinha que manter a calma. Se ela de fato morreu, ele precisava ver o corpo. O problema é que Sônia já fizera o reconhecimento. Agora só deixariam vê-la no cemitério e para lá não iria. A família do professor ainda não foi. Imaginou a lotação de familiares que estariam à espera da liberação do cadáver no IML ou no velório. “Não!” Não queria encontrar com os parentes dela. Tristeza demais. Pai, mãe, irmãos e tios. Precisa vê-la agora. A última vez; viva ou morta.

“Bom dia. Vim ver o Professor.” A Enfermeira não sabia quem era o tal e não entendeu. Ele respirou fundo e engoliu a pouca saliva que ainda tinha e continuou:

“Sou amigo do Professor. O acidente dessa madrugada... De agora há pouco... O homem e a moça. Soube agora. Preciso ver o corpo. Gostaria da certeza...”

“E o senhor, quem é?” Perguntou a moça de branco.

“Doutor Paulo Roberto. Advogado da família e amigo.”

Ele, calado e quase tonto, seguiu-a por um corredor interminável, enquanto a outra tagarelava: “Trouxeram os dois ainda com vida. Tentaram de tudo. O homem estava quase morto. Quando morrem no local, vão direto para o IML, doutor. Minha vizinha morreu num acidente de moto com o marido. Ela era a garupa. O cara não viu uma lombada e voaram. Os corpos ficaram expostos por três horas até chegar o rabecão... O senhor é advogado. Deve saber como é que funciona”.

“Por favor, doutor. É nessa sala.”

Entraram numa sala retangular. Duas macas com corpos cobertos com lençóis estavam no centro. O chão úmido e pegajoso fora lavado há pouco. Misturava-se no ar um cheiro forte de sangue e desinfetante.

A enfermeira desencobriu completamente lençol de uma das macas. Era ele (ou o que sobrou dele). Seu rosto não passava de um aglomerado de carne, ossos, sangue e pêlos. Como pode ter resistido até o hospital? Viu seu corpo magro e nu, deitado, duro, seu membro e mãos mortas. O homem vivo sentiu certo prazer em conhecer o morto, mas dele, não sentiu raiva. “O Professor!” Pensou. Acidente feio sempre resulta em caixão fechado, já dizia o poeta. Dirigia sem cinto de segurança e teve o seu corpo lançado para fora do automóvel importado. Chocou a cara diretamente com o concreto do poste vilão.

“É ele?” Perguntou a enfermeira.

“É.” Respondeu secamente.

“Certeza?”

“Acho que sim. Não sei. Ficou bem feio.”

“Além de tudo, quebrou os braços e as pernas. A coluna e o pescoço.”

“E ela?” Perguntou o homem.

“Conhecia a moça do Professor?” Respondeu sua pergunta com outra. Ele começava a achar que a enfermeira chamava o Professor de professor com tom irônico.

“Sim.” Respondeu. “Posso vê-la? Assim reconheço se de fato o Professor era o Professor.”

“Por mim...? Eu não conhecia o Professor e nem a moça. Isso é problema do IML. Eu sou só a enfermeira, doutor.” Ele ignorava todas as palavras regurgitadas pela outra. Estava ansioso. Só vendo para crê.

A gorda enfermeira abaixou o lençol até a cintura do corpo feminino e também nu. Era ela. O cadáver já fora lavado e estava pronto para ir ao Instituto Médico Legal. A morta estava branca, como naturalmente ficam os mortos. Seus olhos serrados e a boca entreaberta expressavam o pânico antecedente à morte. Precavida, usara o cinto de segurança que lhe garantiu a aparência, mas a não a vida. Vida miserável que a única armadura é o corpo frágil. Somente um grande corte na altura da testa e outro pequeno na região do queixo. Morrera de nariz arrebitado, mas apavorada.

Estava mais magra do que há dois meses. As costelas apareciam cobrindo o pulmão colabado e sem ar. O homem notou uma grande ferida na altura do ombro esquerdo. E pela a anormal angulatura do braço direito, sentenciou que ela quebrou-o. Reparou nos seios nus e inertes (diferente de quando, após o coito, eles se movimentavam freneticamente influenciados pela respiração da canseira). Morta. Saudades dos seios vivos, travesseiros das noites de amor. Inerte e fria. Também sentiu uma grande dor no peito. Uma dor que aperta. Ainda a amava.

“É a moça do Professor, não é, doutor?” Perguntou a enfermeira enquanto cobria-a novamente. Ele nada respondeu, virando as costas para as duas (a enfermeira e a morta) e saiu da sala, para a surpresa da viva.

Caminhava rente e ereto, voltando pelo mesmo corredor. Respirava fundo. Cada vez mais tonto. Olhou as horas para testar o raciocínio. Tudo em vão. Passou novamente por Sônia que, olhando para ele com os olhos fundos e brilhosos, foi novamente ignorada.

Na porta do hospital, respirando o ar puro, olhando o azul do céu da manhã, vomitou no chão. Segundos depois, reconheceu o cheiro de uísque da noite passada no seu vômito.