O Valor do Grave

SÓ É GRAVE AQUILO QUE É NECESSÁRIO, SÓ TEM VALOR AQUILO QUE PESA.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Crônica do 433

Era (e ainda deve ser) um ônibus vermelho-alaranjado. Fazia a linha Vila Isabel\Leblon e tinha o numero correspondente 433. O coletivo cruzava parte da Zona Norte carioca até a Zona Sul. Vinha para o Flamengo, seguindo pela orla da Praia de Botafogo. Atravessava os dois túneis: o túnel que dá para ao Shopping Rio Sul e o outro que acaba na Avenida Princesa Isabel, adentrando nas artérias de Copacabana.

Sempre fugi do sono, uma vez que não via lógica em acordar antes das dez da manhã. Às vezes não dormia e mesmo assim ia ao colégio, sonâmbulo ou meio zumbi. Às vezes, simplesmente não ia. O fato é que nesse período estava mais dedicado aos estudos, pois com algum sacrifício, minha mãe me matriculara no Colégio Anglo Americano. Era um tradicional colégio localizado em Botafogo que só tinha aulas no período da manhã. Contrariando minha vontade, me esforçava em acordar cedo.

Pegava o 433 na Avenida Osvaldo Cruz no Flamengo, no último ponto antes da praia. Era perto do apartamento no qual morávamos na Rua Senador Vergueiro. Exatamente as seis e quarenta e cinco da manhã o previsível coletivo parava. Já dentro, acomodado ou não, ao caminho para o colégio, admirava toda a paisagem natural e urbana como se a visse pela primeira vez. A linda praia de Botafogo acortinada pelo Pão de Açúcar, o edifício Argentina, o edifício espelhado da Telemar, o resto do Aterro do Flamengo com seus chafarizes, mendigos e estátuas e o Clube Botafogo. No túnel, puxava a cordinha e descia para mais um dia de física, matemática e química. Coisas inúteis e sem poesia, diferente de toda a paisagem admirada.

Lembro-me claramente da espera pelo ônibus. Chegava ao ponto e acendia um cigarro (os maravilhosos cigarros dos meus quinze anos). O bendito transporte nunca permitia terminar-lo, pois como já disse, ele era pontual e eu não.

No inverno carioca, as manhãs frias são cobertas por uma garoa leitosa e cheirosa. O céu é cinza e o percurso até o ônibus era, de certa forma, prazeroso. Penetrava a névoa com meu walkman. Cantava mentalmente, desviando das bostas de cachorros acumuladas na calçada. No verão, já fazia calor de manhã. Acordava mais mal-humorado, menosprezava o walkman e as bostas fediam mais.

Lembro dos personagens que faziam parte desta minha viagem de vinte minutos até o colégio. Tinham os fixos e os aleatórios. Fixos como o homem gigantesco que subia dois pontos depois do meu. Era halterofilista ou coisa do tipo. Músculos enormes. Uma anomalia. Ocupava sozinho dois bancos e não se preocupava com os passageiros que iam em pé; O peruano que era muito parecido com o Che Guevara; Ainda tinha o homem de paletó e os outros garotos estudantes sonolentos como eu. Figuras aleatórias e inesquecíveis quebravam a rotina e divertiam os espectadores. Uma vez adentrou uma mulher que parecia um cotonete (magrinha e com cabelos curtos e brancos); Um punk com toda a indumentária anarquista, voltando logo cedo da manhã, quem sabe, de alguma festa absurdamente louca que coisas incríveis aconteceram. Outra turma de passageiros que nunca me esquecerei, eram os nordestinos que iam ao trabalho. Fazia questão de sentar perto deles e acompanhar seus diálogos, seus sotaques e suas estórias, matando um pouco a saudade da minha terra natal.

Fiz inúmeros amores platônicos nesse trajeto: Meninas e mulheres. Moças lindas ao caminho do colégio, da faculdade e do trabalho. Às vezes ia mais arrumado e caprichado. Rezava para sentar perto das minhas musas e ensaiava diálogos possíveis. Como todo sonhador, sonhava muito e realizava pouco. Os diálogos possíveis eram impossíveis, pois quando sentava ao lado delas, ficava mudo. Nunca fui notado por nenhuma delas.

O tempo passou e fiquei mais sério e menos poético. A rotina e o mundo repleto de informação, nós obriga a apagar da cachola certas memórias. Porém, algumas, eu me recuso em abandonar. Como disse, o tempo passou e as coisas estão diferentes. Impossível escrever sobre minha adolescência, na sua mais completa essência. Nasci em Fortaleza, mas tornei-me homem no Rio de Janeiro. E assim a vida levou-me de volta para a terra das minhas origens (terra também querida) e abandonei, de fato, a outra cidade amada. Infelizmente muitas coisas já apagaram, mas outras, felizmente, insistem em permanecerem latentes. Sinto saudades. Saudades dos meus quinze anos, do Rio e do ônibus 433 vermelho-alaranjado.